O sapateiro

 Confinamento - Dia 10

Sou zero consumista. Logo, tenho coisas em casa já bastante usadas e em bom estado, incluindo meus pares de sapato. Longe de mim dizer não ser consumista é bom ou ruim, não estamos num momento de presumir o certo e o errado de tudo. Para julgamentos, já nos basta as redes sociais cheias de santos apontando dedos para pecadores. Um dia quem sabe, eu entenda esse fenômeno. No momento quero contar para vocês sobre o sapateiro.

Dr. Sapato tem uma sapataria no estacionamento do supermercado perto de casa. Ele ganhou esse engraçado apelido porque alguém que lustra, troca sola, retira pregos e costura sapatos só pode ser doutor. É necessário muita, conhecimento, paciência e precisão para lidar com calçados.

Um dia desses, quando ainda tinha o direito de ir e vir, resolvi levar minhas paixões para o Dr. Sapato ver o que ele podia fazer. Peguei um par de botas cano alto, que eu adoro, mais um par de sapato, que tenho adoração, e fui até a sua sapataria.

Não era a minha primeira visita na sapataria do Dr. Sapato, mas dessa vez algo me chamou a atenção logo que entrei. Como fazia sol, vi claramente que havia um símbolo no alto da parede atrás do caixa. Opa, olhei novamente e não era um emblema e sim uma bandeira. Míope que sou precisei chegar mais perto para ver, era a bandeira de Portugal. Na hora sorri.

- Bonjour Dr. Sapato, o senhor é português?

O sapateiro sorri e fez que sim com a cabeça. Que sorte a minha, iria poder explicar tudo o que queria para ele, sem precisar me esforçar muito. Afinal, estava levando dois pares de sapatos que eu adorava e queria que o profissional me entendesse bem.

- Então o senhor fala português?

- Oui - me disse o doce doutor em francês.

Comecei a lhe explicar o que gostaria que ele fizesse com meus dois pares de sapatos. Estava radiante na minha zona de conforto falando a minha língua materna. Quem me conhece sabe que falo com as mãos e, além disso, também consigo mexer meus braços e cotovelos numa dança peculiar.

Dr. Sapato, educado que é, escutava tudo atentamente para não perder nenhum detalhe do meu espetáculo. Depois de algum tempo Dr. Sapato me corta: “Madame, madame”. Eu paro de falar. Sinto um vazio porque vejo a cara de desespero do comerciante.

- Madame, eu sinto muito, mas eu não entendi nada que a senhora falou.

- Não? – respondo indignada.

- Não, madame. Eu sinto muito, mas eu falo bem pouco português e o sotaque da senhora é um pouco “bizarro” para mim. – disse com um francês nativo.

Por favor, não pensem que a palavra bizarro tem conotação negativa em francês. Bizarro significa engraçado, diferente, estranho. Dr. Sapato é um lorde nunca iria dizer nada para me ferir.

Dei um sorriso bem amarelo para o doutor. O que ia dizer? Naquele momento me senti bizarra. Coloquei os pares de sapato em cima do balcão e fiz uma pergunta direta:
- Quanto custa para arrumar os saltos dos meus sapatos, monsieur doutor? - Pergunto em francês, fora da minha zona de conforto.

- Vão custar blá blá blá, Madame - responde o mestre dos calçados feliz na sua.

Aceitei a oferta. Naquele momento não tinha condições de negociar preço, estava desapontada. Dei o sinal em dinheiro para ele reformar os pares, agradeci e saí. Pensei em voltar logo em seguida para lhe dar uma sugestão, mas desisti. Queria lhe dizer para escrever ao lado da bandeira de Portugal: “não falamos português”. Assim nenhuma outra falante nativa passaria o vexame que eu passei. Risos! Quem sabe eu faça isso no futuro, quem sabe não. Agora só quero parar de comer igual uma pessoa que nunca viu comida na vida.

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